Poucos ramos da medicina dependem tanto da experiência e da sensibilidade do médico quanto a psiquiatria –até agora. Se der certo a invenção de um grupo de neurocientistas e físicos brasileiros, em alguns diagnósticos difíceis de psicoses ela poderá usar menos arte e mais ciência: análises quantitativas de relatos de sonhos. Pesquisadores das universidades federais do Rio Grande do Norte (UFRN) e de Pernambuco (UFPE), liderados pelo neurocientista Sidarta Ribeiro e pelo físico Mauro Copelli, estão propondo um método automatizado para definir se um paciente é esquizofrênico ou bipolar. A primeira autora é a psiquiatra Natália Mota, da UFRN. O trabalho foi publicado eletronicamente, quarta-feira, no periódico "Scientific Reports", do grupo Nature. A psiquiatria conta com vários questionários padronizados, porém dependentes da interpretação do médico. Eles resultam em pontuações úteis para fixar diagnósticos. Não existe, porém, um teste quantitativo para apoiar o diagnóstico de psicoses, ao estilo de um exame de sangue capaz de indicar se a pessoa é diabética ou não. Psicoses como a esquizofrenia e o transtorno bipolar se caracterizam, entre outros sintomas, por alterações no discurso (fala) dos pacientes. Um esquizofrênico pode se mostrar mais quieto, lacônico. Já um bipolar, na fase maníaca, costuma tornar-se verborrágico, falando sem parar. Em 2012, o grupo do Nordeste já havia publicado um primeiro artigo sobre a análise dos relatos de pacientes com o uso de grafos (diagramas em que palavras são representadas como nós, e a sucessão entre elas, por arcos).
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Agora, os autores deram um passo adiante. Para isso, seguiram a pista dada por Sigmund Freud (1856-1939), no clássico psicanalítico "A Interpretação dos Sonhos" (1899), de que o universo onírico dá acesso privilegiado às profundezas da mente. Eles mostraram que os relatos de sonhos, quando submetidos ao método, são mais informativos para o diagnóstico diferencial do que os de eventos da vigília. Ao relatar fatos da vida consciente, a pessoa tende a seguir a ordem cronológica. Isso resulta em grafos mais simples. Já o paciente acordado, ao contar um sonho, tenta reproduzir sua estrutura, o que faz transparecer perturbações no discurso. "O relato do sonho é um produto totalmente pessoal, muito mais patognomônico [revelador da doença]", diz Sidarta Ribeiro. A análise dos padrões dos grafos, aplicada à fala de pacientes já diagnosticados como esquizofrênicos e como bipolares, revelou-se especialmente precisa para discriminar um grupo do outro. Essa capacidade de diferenciação não se perdeu quando os relatos foram recortados em pedaços de tamanhos diferentes. Ou seja, ela não era produto apenas da verborragia ou do laconismo do paciente. Tampouco desapareceu quando eles foram traduzidos para outras línguas (inglês, espanhol, francês e alemão). Dito de outro modo, o método parece ser válido independentemente da língua do médico ou do paciente. Na realidade, o método pode ser aplicado automaticamente, por um computador que seja capaz de transformar a fala do paciente em grafos e analisá-la. O grupo criou um software para isso, disponível na internet. "Vai ser tão útil para o psiquiatra quanto um raio-X para o ortopedista", afirma Ribeiro. "Não vai dizer se [o paciente] é esquizofrênico ou não, só fornecer a medida de um sintoma." É possível falar em medida porque dos grafos se obtêm expressões matemáticas do grau de complicação do percurso linguístico seguido pela narrativa. Os itinerários dos relatos de sonhos de bipolares tendem a ser muito mais "conectados", quer dizer, cheios de idas e vindas. O neurocientista acredita que o método será útil, também, para detectar a tendência de jovens para desenvolver psicoses e para avaliar a eficácia e a evolução de tratamentos para os distúrbios.
POTENCIAL
"[A linha de pesquisa da UFRN] É extremamente interessante", diz o psiquiatra Helio Elkis, coordenador do Programa de Esquizofrenia (Projesq) do Instituto de Psiquiatria da USP, que já a conhecia. Elkis ressalva tratar-se de uma prova de princípio, que precisa ser reproduzida por outros grupos, pois o número de pacientes (60) foi pequeno. "Mas dizer que vai substituir o diagnóstico? Acho que não." O artigo anterior sobre o tema, de 2012, já havia despertado o interesse do grupo de Lena Palaniyappan, neurocientista da Universidade de Nottingham (Reino Unido), que tem em vista uma colaboração com a UFRN. "[A abordagem] É muito atraente para neurocientistas e psiquiatras clínicos do mundo todo", afirmou Palaniyappan por e-mail. "Se [vier a ser] usada amplamente, tem potencial para permitir que testes clínicos avaliem tratamentos para problemas mentais e de linguagem nas psicoses." "Eles usaram métodos sofisticados de análise para tentar identificar características associadas a transtornos psiquiátricos, o que é uma estratégia engenhosa e com um bom potencial clínico", diz Marco Aurélio Romano-Silva, da UFMG.
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